Currículo oculto de candidatos e escuta ativa de funcionários: o que Unilever tem a ensinar a empresas sobre a busca por competências

Andressa Rovani | 22 fev 2022
Luana Suzina, gerente de Equidade, Diversidade e Inclusão da Unilever. (Foto: Divulgação)
Andressa Rovani | 22 fev 2022

Três estagiárias, ao se perceberem as únicas pessoas negras em uma equipe de 50, se tornaram o estopim para a transformação pela qual a agenda de inclusão da Unilever passa desde 2019.

Elas começaram abordando outros funcionários negros pelos corredores da empresa para troca de experiências e o grupo ganhou o nome de Afrolever. Hoje, a iniciativa conta com um fundo de R$ 17 milhões para acelerar a inclusão racial tanto em suas estruturas internas como em sua cadeia de valor e comunidade.

Entre as ações, estão mudança no método de recrutamento, treinamento de gestores, estímulo ao desenvolvimento profissional e mapeamento de novos perfis de fornecedores. Entre os resultados, a meta inicial de ter 30% de estagiários negros já alcançou 75% em 2021. Já marcas da multinacional, como Seda, assumiram compromissos de investir na representatividade negra em suas campanhas.

Ouvir o que os funcionários tinham a dizer estruturou a governança do programa. Luana Suzina, gerente de Equidade, Diversidade e Inclusão, fala a seguir dos desafios e conquistas na construção conjunta dos pilares de uma empresa em busca de uma sociedade mais justa.

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NETZERO: O Afrolever é uma iniciativa bastante pioneira. Como ela floresceu na Unilever?

LUANA SUZINA: A Afrolever nasceu de três estagiárias, que em fevereiro de 2019 começaram o estágio na Unilever e eram as únicas negras entre 50 pessoas. Decidiram se reunir e começaram a abordar pessoas negras nos corredores. Montaram grupos de Whatsapp para trocar experiências. Então, Afrolever já nasce de algo muito importante para a Unilever, que é esse espírito intraempreendedor.

Naquele momento nascia também na Unilever o MUDE – Movimento Unilever pela Diversidade e Equidade, feito por alguns funcionários mobilizados. E nasce a área de diversidade como ela é hoje, com essa governança e estratégia. Essa junção das pessoas começa a formar grupos estruturados, com feedback, com diagnóstico. A pergunta que fazemos, dentro dessa estratégia, é o que a Unilever precisa fazer para ser uma empresa mais inclusiva para esse grupo? Essa é a espinha dorsal. É uma escuta muito ativa das pessoas negras que trabalham na Unilever.

Muitas empresas devem passar por esse movimento por parte dos funcionários. Mas como a Unilever teve a sensibilidade de perceber que era hora de ouvi-los?

Eu cheguei na empresa justo nesse momento e sou responsável pela criação dos Fazedores. Temos um objetivo megalomaníaco, que é transformar todos os funcionários em fazedores. Fala-se muito de diversidade na sociedade, mas o que você faz a partir daquilo que você escuta? Um treinamento de viés inconsciente resulta em quê? Trazemos para a prática e vale para o presidente da empresa e para o funcionário que está trocando produtos na gôndola.

O Fazedores nasce em novembro de 2019 quatro grupos: Afrolever, PCDs, mulheres e LGBTQIA+. Começamos a convidar a todos para fazer parte, mostrar que era uma agenda colaborativa. Eram 30 pessoas em cada grupo, hoje são mais de 400 pessoas envolvidas diretamente nos grupos de afinidade.

É uma receita com alguns ingredientes. O Fazedores convida para fazer junto e a cultura da Unilever é empreendedora, não é uma hierarquia bruta que te impede de provocar o sistema. E tem outro elemento forte que é o propósito. Todas as pessoas dedicam até 10% de suas agendas para uma causa que esteja ligada a seu propósito. E diversidade e inclusão são o propósito de muita gente. Há mais de 1.000 pessoas de Norte a Sul do Brasil envolvidas nisso.

Por fim, algo que descobrimos ser fundamental e foi um grande salto pra gente é a interseccionalidade. Provocamos esses grupos para falar disso o tempo todo.

Que ações concretas nasceram do grupo Afrolever?

Os grupos indicam onde a empresa precisa acelerar e a Unilever constrói essa agenda. Um dos feedbacks do Afrolever era a necessidade de um programa de desenvolvimento interno para pessoas negras. Criamos o Prontidão, que é um programa de aceleração de carreira para que elas estejam prontas para assumir postos de liderança. Esse programa foi liderado por duas mulheres negras do RH e hoje tem mentoria, coaching, inglês, uma sequência de atividades que diagnosticamos juntos que era necessária. Já temos pessoas dentro desses grupos que começam a ser promovidas. Esse se tornou um dos pilares.

“São quatro áreas: pessoas (atração, recrutamento e promoção interna), marcas (representatividade), fornecedores (desenvolvimento da cadeia e de nossos processos para comprar mais de empreendimentos liderados por pessoas negras) e comunidade (com projetos sociais que beneficiem no mínimo 60% de pessoas negras).”

Ouvir a voz de dentro, das pessoas, foi superimportante para entender o que faz sentido. Não queríamos lançar o Fundo Afrolever sem fazer tudo isso antes. Quando nos sentimos seguros, chamamos consultores externos e apresentamos o fundo. Perguntamos: faz sentido para a sociedade? Com o aval, a gente botou na rua.

Por que a empresa julgou importante consultar um grupo externo?

Se não ouvimos a sociedade, ficamos muito centrados em nós mesmos. Ouvir é importante. O que queríamos saber é se essa proposta contribui para o avanço dessa agenda, de uma sociedade melhor para as pessoas negras. Precisávamos saber se isso ecoava, se o que estávamos construindo teria impacto na sociedade. O grupo se reunirá a cada 6 meses e nos dará orientações estruturais.

Então o próximo encontro deve ser no final de março ou começo de abril. Quais são os primeiros resultados que o programa deve apresentar?

Temos duas metas de curto prazo, até dezembro de 2022. Dobrar a alta liderança negra e triplicar a média liderança negra da organização. Quando olhamos para esses indicadores, já avançamos na alta liderança cerca de 60% da meta, estamos um pouco acima da previsão. É um indicador muito positivo, que tem impacto de duas frentes: tanto de recrutamento, contratamos mais pessoas, como desenvolvimento, tivemos maior reconhecimento interno. Esse é um indicador de saúde desse programa.

A outra meta é sobre marcas. Quando eu olho para Seda, vejo todo o compromisso que a marca fez no mercado pró-equidade racial. Ter como principal pessoa do principal produto na principal campanha a Gabi de Pretas, que influencia e traz essa potência da mulher negra, é uma baita influência dessa agenda. Quando Dove Men se posiciona trazendo uma leitura de masculinidade positiva, é resultado dessas discussões.

“Há ainda o resultado dos estágios: 75% dos estagiários contratados são pessoas negras. Isso é resultado da agenda de diversidade e inclusão. Numericamente, programas de estágios e trainees trazem resultados que nos deixam muito felizes. Começamos com meta de 30% no primeiro ano de programa, em 2019, agora temos 75%.”

A empresa reviu a metodologia ou os parâmetros de avaliação das habilidades esperadas dos funcionários para que eles recebam uma promoção ou sejam aprovados em uma seleção?

A gente mudou uma coisa bastante importante, que começou com a agenda de gênero e se tornou fundamental para a agenda racial. A gente recruta hoje usando uma metodologia que chamamos de “currículo oculto”.

“Quando um estagiário vem para a entrevista, não traz absolutamente nada do que está no currículo dele: não tem a universidade que ele cursa, não tem o curso que ele faz, não tem experiência profissional, não tem intercâmbio, não tem idiomas. Eu quero saber sobre a pessoa, porque procuro o potencial, o talento.”

Por exemplo, se a área exige que a pessoa seja responsável, pode ser uma pessoa que fez intercâmbio e passou muito tempo sozinha no exterior ou outra cujos pais trabalhavam e que cuidava dos cinco irmãos levando-os para a escola. Precisamos buscar a competência. Tiramos o inglês, por exemplo. E esse exercício é bastante ousado para uma multinacional anglo-saxônica.

Fazemos provocações com o gestor. Se ele diz: preciso de nível avançado no Excel, perguntamos: precisa disso ou de uma pessoa que saiba fazer análise de dados? Porque ela vai olhar para o Excel e tirar uma análise daí, então vamos em busca de uma competência que é a curiosidade ou como ela conecta informações. Essa é a grande mudança no processo, é repensar como a gente busca competência nas pessoas.

O Afrolever e a agenda de equidade racial são o principal investimento da empresa em diversidade?

Temos três pilares prioritários na nossa estratégia: gênero, raça e pessoas com deficiência. Quando eu olho para gênero, estou falando de homens e mulheres e todas as pessoas que se entendem como homens e mulheres. Eu sei que é meio redundante, mas as pessoas têm o costume de colocar as pessoas em caixinhas. Aqui tenho uma agenda importante: apesar de termos mais de 50% de mulheres na liderança, ainda há áreas com desafios. E é necessária uma revisão desses processos na perspectiva LGBTQIA+.

No pilar raça, é o Fundo Afrolever. É a agenda mais importante em termos de representatividade, porque era onde estávamos mais distantes nos indicadores. E há as pessoas com deficiência, em que estamos olhando para acessibilidade. Essas são as nossas três iniciativas porque precisamos ter foco, senão não movemos a agenda para nenhum lugar. Mas a interseccionalidade é fator importante.

Nesse processo, qual tem sido o maior desafio para você e sua equipe?

A gente replica muito do que somos na sociedade. Diversidade e inclusão são um tema muito cultural, e há muitas pessoas com histórias de vida muito diferentes na organização. Então eu preciso moderar o diálogo para não ter conflito.

“Os dois maiores desafios são o medo e a culpa. As pessoas tem medo de falar de diversidade porque temem falar coisa errada. Quando elas se lançam e eventualmente erram, sentem culpa, culpa por perguntar, por não entender. Ninguém quer ser uma má pessoa. Precisamos articular todas essas relações.”

Eu vivo dizendo que meu trabalho é de moderação e diálogo 100% do tempo: como eu trago educação para elas entenderem que todas essas coisas que barram a inclusão estão sustentadas num monte de vieses que fomos coletando ao longo do tempo como sociedade?

O desafio é preparar as pessoas para causar um impacto maior fora [da empresa]. A gente quer dizer para mais empresas que precisamos assumir esse papel de mudar a estrutura racista, para que as pessoas possam viver sendo quem elas são.

O programa também está voltado para a cadeia de valor. Como é feito o mapeamento para identificar quem pode se tornar fornecedor?

Esse é um dos projetos mais jovens que temos. Ele começa com um mapeamento na nossa base de fornecedores para entender quantos negócios já são liderados por pessoas negras e quanto contratamos de cada um deles. Há outra frente para atração de novos fornecedores e uma terceira, para o desenvolvimento dos pequenos.

Queremos identificar quem tem potencial para vender para a Unilever mas precisa passar por um treinamento para atender a uma multinacional, que é algo bastante complexo e burocrático. Tenho uma agenda de diagnóstico, de atração de fornecedores e de desenvolvimento. Esse programa vai rodar melhor este ano.

Nos corredores da empresa, como você sente, informalmente, o retorno dos funcionários sobre o programa?

É muito legal. Tem um impacto tão positivo que é maior do que a gente supunha. Durante a restrição da pandemia, aconteceram duas coisas muito emblemáticas. Os eventos de diversidade remotos ficaram mais acessíveis para mais gente participar. Conseguimos “sair” de São Paulo e chegar a outras regionais, ter gente do Brasil inteiro tocando projeto. Era o que fazia as pessoas se sentirem mais felizes, trouxe humanização num momento em que o mundo todo estava sofrendo muito.

E agora, no retorno, as pessoas continuam mobilizadas e têm projetos ainda mais avançados. Há uma humanização das relações que é muito poderosa. A gente tem feedback inclusive do global: os brasileiros estão sempre perguntando como fazer determinada ação de modo mais inclusivo.

A Unilever Brasil pode então exportar o modelo do programa para outros países?

Estamos, sim, exportando o Fazedores para a América do Sul, isso está acontecendo neste momento.

O Fundo Afrolever foi criado em outubro de 2021 com o investimento de R$ 17 milhões, para sustentar essas ações. Esse aporte passa a ser periódico?

É um investimento contínuo, não é um único. É um aporte inicial de R$ 17 milhões que deve receber outros aportes ao longo dos meses conforme os projetos vão avançando ou outros vão sendo criados. Podemos eventualmente descobrir algo que demande mais investimento e vamos atrás. Queremos expandir, falar de inovação e de startups. Mas isso vai vir do diagnóstico.



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