“As pessoas ligam saúde mental à doença, mas ela está atrelada ao bem-estar”, diz Michele Franca, da Ambev

Julia Moioli | 29 nov 2022
Michele Salles Villa Franca, diretora de diversidade e inclusão e saúde mental da Ambev. Foto: Germano Lüders
Julia Moioli | 29 nov 2022

“Tenho 40 anos, sou mãe do Caetano, e trabalho na área de recursos humanos há mais de 15.” É assim que a diretora de diversidade e inclusão e saúde mental da Ambev, Michele Salles Villa Franca, gosta de se apresentar. E a explicação é simples: “Meu papel principal, que é o de ser mãe, se correlaciona muito com o que eu acredito, com o que eu quero para mim, para as outras pessoas, e com a forma com que atuo.”

A experiência com a maternidade está, portanto, no topo da lista de motivos que a fez optar por trabalhar com os dois temas que atualmente são foco de sua dedicação: diversidade e inclusão, e saúde mental. “Hoje entendo e vejo o quanto a dificuldade de modificar cenários dentro de outras grandes empresas, muitas vezes por racismo, influenciou na minha saúde mental e na de outras pessoas.”

Psicóloga de formação, Michele aceitou a proposta da Ambev para assumir a diretoria em fevereiro deste ano. Antes disso, ela foi responsável pela cofundação da consultoria Carreira Preta, para oferecer soluções corporativas e educacionais para inclusão e integração social.

“Nossa área tem como missão ser e pertencer. Para ser, é preciso ter a liberdade de ser quem somos e de conectar com o que percebemos. Para pertencer, é preciso ter segurança psicológica para nos sentir pertencentes aos rituais e processos. Portanto, esse ser é como se fosse diversidade, equidade e inclusão, e o pertencer é a saúde mental”.

Na entrevista a seguir, a executiva fala sobre a conexão entre os temas que estão no escopo de atuação de seu cargo e sobre as experiências, desafios e realizações de liderar a área em uma das maiores empresas do mundo.

NETZERO: Como sua trajetória pessoal e profissional se cruzou com os temas diversidade e inclusão e saúde mental?

MICHELE SALLES VILLA FRANCA: Eu tenho 40 anos, sou mãe do Caetano – e antes dele chegar, tive três perdas de bebês – e eu trabalho na área de recursos humanos há mais de 15 anos. Mas eu não gosto do termo “recursos”, por isso adorei quando passou a ser chamado de “people” e “gente”, entre outras nomenclaturas. Sempre me apresento falando do meu papel principal, que é o de ser mãe, porque acho que ele se correlaciona muito com o que eu acredito, com o que eu quero para mim e para as outras pessoas e com a forma com que atuo por meio do meu propósito na rotina. A opção de trabalhar com diversidade, inclusão e saúde mental tem muito a ver com isso, e também com a trajetória que eu vivi dentro de grandes empresas, com aquilo que, muitas vezes, não tinha a possibilidade de modificar, seja por não ter um cargo tomador de decisão ou em função de racismo estrutural, algo sobre o qual eu não tinha percepção antes, mas, hoje, entendo e vejo o quanto influenciou na minha saúde mental e na de outras pessoas. Em grandes empresas, entendi o cenário, os processos e as tomadas de decisão, além de como se estabeleciam as relações entre as pessoas nesse sentido.

Você também tem formação em psicologia.

Sim.

Eu lembro que, em um período da minha vida, decidi que não iria trabalhar mais com processos seletivos porque eles estavam a favor de uma segregação e não de uma seleção específica para a atividade fim.

Foram todas essas coisas, somadas a uma questão individual minha, que me trouxeram para onde estou hoje. Quando passamos por esses processos pessoais que se conectam com o trabalho, dependendo do momento, dizemos: “Certo, eu quero transformar isso. Não quero mais lidar com isso porque não faz mais parte de mim.”

Desde então migrei para a área de desenvolvimento e me especializei em processos de desenvolvimento de lideranças, fiz formação em coach e também me aprofundei em gestão de projetos, justamente para ter um olhar de começo, meio e fim com metodologia, que é algo bem importante para mim. Entender o escopo técnico, a vontade individual de transformar e minha descoberta enquanto mulher negra depois dos 30 anos, tudo isso se juntou e fez com que eu trabalhasse mais focada com o tema de diversidade e alimentando a saúde mental. Em 2020, quando eu fundei o Carreira Preta, desenvolvi com meu sócio e parceiro uma metodologia de gestão de carreira focada em pessoas negras, com todos esses aparatos de diversidade e saúde mental e de como a pessoa se reconectava com ela mesma. Então, quando veio a proposta da Ambev, esses desafios se conectaram.

Quais têm sido os principais desafios?

As pessoas estão acostumadas a atrelar a questão da saúde mental a doença, a não estar bem e a uma falta, quando, na verdade, a saúde mental deve ser atrelada a bem-estar, frequência, pausa, bom humor, rotinas, saúde. Então, virar esse frame na cabeça das pessoas por si só já é um desafio. Além disso, fazer com que elas entendam que saúde mental é algo importante para a performance delas. Esse foi um dos fatores fundamentais que motivaram minha vinda, já que meus principais trabalhos foram justamente desenvolver programas de performance com esse olhar, com esse cuidado, com esses recortes.

Para seguir esse caminho, desenhamos aqui na Ambev uma jornada de saúde mental com cinco etapas específicas, em que falamos muito da auto-responsabilidade, do contexto corporativo e de liderança.

Como funciona essa jornada?

Olhamos para o momento em que cada um está e onde quer chegar.

O primeiro ponto é a quebra do estigma: as pessoas precisam entender o conceito de saúde mental e por que ele é importante. Fazemos isso por meio de letramentos, que incluem teorias sobre o tema e sobre os transtornos. Muitas vezes, quando alguém chega e fala que está com depressão, as pessoas se assustam, não sabem lidar e não querem nem conversar sobre o assunto.

O passo seguinte é o de consciência, quando de fato passamos a atuar pelo auto-conhecimento, respeitando também o contexto da outra pessoa. Começamos a ter a percepção do estabelecimento dessas relações e do cenário geral da empresa. Depois partimos para o cuidado, que é quando começamos a ter sensibilidade nas relações. Passamos a fazer ações e pensar numa agenda em que nos respeitamos mais porque entendemos mais seu cenário. É o uso de palavras mais adequadas, a criação de pausas, rituais e processos que respeitem mais.

Como próxima etapa, temos a prevenção. Nesse ponto, começamos a evitar qualquer tipo de gatilho, já que já os conhecemos. Além disso, incentivamos mais as práticas de saúde, não apenas no sentido fisiológico, mas de práticas que cada um curte fazer, como correr ou assistir a séries. E aí, por último, temos a promoção de fato da saúde mental, que é quando fazemos isso de uma forma mais natural porque passamos por todas as outras etapas primeiro. O que permeia e garante essas cinco etapas da jornada é a segurança psicológica.

Dizemos que nossa área tem como missão ser e pertencer. Para ser, é preciso ter a liberdade de ser quem somos e de conectar com o que percebemos. Para perceber, é preciso ter segurança psicológica para estar naquele ambiente, para nos sentir pertencentes aos rituais e processos e saber se eles nos atendem enquanto pessoa e não nos desrespeitam. Portanto, esse ser é como se fosse diversidade, equidade e inclusão, e o pertencer é a saúde mental.

É importante conectar as diversas áreas da empresa para fazer isso funcionar?

Sim, e esse tem sido um processo muito legal na Ambev. Como área, ainda estamos nos estruturando com pilares, papéis e responsabilidades. Com isso estruturado, chamamos as outras áreas para estarem com a gente. Mostramos nossa missão, para onde queremos ir, qual é o nosso planejamento de um, dois, três anos e quais são as expectativas para que essas pessoas venham conosco. Mas também perguntamos: “O que vocês já estão fazendo e onde podemos entrar?” Porque estamos em uma empresa que já está andando há muitos anos e que é uma referência global. Há muitas coisas boas que podemos pegar e ampliar, direcionando para a questão de saúde mental. Tem muita gente querendo fazer e isso é fantástico. Então, também buscamos parcerias internas e do mercado pra fazer esse tipo de trabalho. As portas internamente estão bem abertas. Vou te dar um exemplo: tivemos um treinamento em uma das regionais sobre saúde mental e foi um trabalho de qualidade incrível que virou modelo para as outras regionais. Incentivamos essas boas práticas porque, apesar de sermos pequenos enquanto área, conseguimos dizer qual é o modelo, o tom e o método de atuação.

E qual é o papel da liderança nessa jornada?

Fundamental.

É o líder que, no final das contas, é o principal embaixador disso. Ele faz, estimula, é exemplo, modela e ele tem que entrar em contato com sua própria vulnerabilidade para poder entender a saúde mental dele e do outro e conectá-la à cultura e entregando performance. É preciso alinhar com a alta liderança para que ela entenda o investimento para essas ações.

Já há resultados?

A jornada foi desenhada há apenas quatro meses e, neste momento, estamos rodando a pesquisa de engagement. Mas nosso principal resultado foi a organização de um letramento geral para atender a alta liderança do time de gestão de pessoas, que é uma extensão nossa. Conseguimos colocar fluxo, dar contexto e direção e, principalmente, tirar o medo, quebrar o estigma. Depois, cascateamos para a média liderança, que mantém esse cascateamento, alinhando e atualizando todo o processo.

Outro indicador é o volume de solicitações de treinamento que temos recebido, não só para gerentes de venda e representantes de negócios que estão na ponta, mas também para diretores e gerentes regionais, que são pessoas que sofrem também uma pressão super importante por resultados. E sabemos o impacto que isso tem na saúde mental das pessoas, especialmente num ano de Copa, no verão, para uma empresa de bebidas. Então, temos realizado conversas que precedem esse comportamento de apoio para que essas pessoas entendam como gerir melhor nesse cenário.

Além disso, temos uma parceria muito forte com a área de saúde – o que hoje chamamos de saúde integral – para integrar saúde mental e física e entregar para a companhia e para a pessoa o que chamamos de performance sustentável.

O que é uma performance sustentável?

Na vida, todo mundo passa por momentos em que é preciso dar aquela esticada para fazer as entregas. É, inclusive, nesses momentos que nos desenvolvemos e passamos pelos maiores desafios. Mas também são necessárias pausas para descansar, tomar fôlego, se restabelecer fisicamente e psiquicamente para continuar a jornada de desenvolvimento. O que acontece é que a gente sempre estoura essa elasticidade.

Então tem sido um processo de aprendizagem nesse sentido e a área de saúde letrou também os médicos sobre isso para que a gente pudesse fazer essa atuação com os times de gestão e essa atuação com a área médica também.


A falta de diversidade leva a ansiedade e a outros problemas relacionados à saúde mental?


Sim, e esse é, inclusive, um dos nossos focos para 2023. Não temos como trabalhar diversidade sem pensar em saúde mental, e o contrário também é verdadeiro.

Em termos de sofrimento psíquico, temos que pensar no sofrimento psíquico para uma mulher e para um homem. Em questões de gênero, temos que pensar em uma pessoa negra e uma pessoa não negra, em uma pessoa trans e uma pessoa cis. Quando fazemos esse comparativo, levando em conta as histórias, o processo, a  cultura, a inserção, o recorte dessas pessoas, existe uma hostilidade natural social, que pode ser reproduzida dentro da empresa.

Então, sim, precisamos ter esse cuidado em relação às pessoas e ao recorte de diversidade. Isso me leva a um outro ponto. Acabei de sair de uma ligação com meu time sobre o cuidado com quem cuida. Temos, por exemplo, grupos de afinidades nos boards. Como cuidamos dessas pessoas voluntárias que estão ali com a gente? Como é que fica a saúde mental dessas pessoas que cuidam das outras pessoas também? Isso também faz parte da nossa trilha de desenvolvimento. Não podemos não olhar para isso porque senão entregamos a metade. É uma questão de tratar também a origem do problema porque, quando falamos de saúde mental, muitas pessoas agradecem por estarmos ali como se fossemos fazer um milagre. Não conseguimos fazer milagres, mas conseguimos conectar aquilo que é importante para elas, com aquilo que elas têm de potencial e com a cultura e o ambiente dentro da empresa. Ajudamos a pensar, avaliar e perceber para que elas tomem decisões importantes e possam performar de fato.


Você acha que a saúde mental ainda é negligenciada pelas empresas em geral?

Acho. Diversidade e inclusão e saúde mental são negócio. Há diversos estudos à disposição mostrando que as empresas perdem trilhões no mercado em função de não cuidar de saúde mental. Há um enorme volume de afastamentos e, além de se perderem pessoas, sobrecarrega-se os demais do time. Já se tratarmos, principalmente no médio prazo, temos um ganho extraordinário, que, junto com diversidade e inclusão, trazem até inovação.

Você vê mais consciência nos funcionários sobre esse tema?

Sim, minha percepção individual é que essa importância está crescendo. A sensação que eu tenho é que as pessoas estão se conectando mais com elas mesmas, olhando mais para os próprios limites e para as próprias histórias. A pandemia e a política nacional têm trazido uma reflexão interna muito forte que nos faz olhar para o outro de outra forma também.

Não tem como nós, enquanto Ambev, falarmos, de crescimento compartilhado sem fazer a conexão com a questão da saúde. Só de pontos de venda temos mais de um milhão. São mais de um milhão de pessoas conectadas com a gente. Meu sonho, num futuro muito próximo, é como conseguimos ajudar essas pessoas que já estão no nosso ecossistema a estarem cada vez melhores. Se não, não justifica o nosso propósito de ter “mais razões para brindar”.



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