“Caso Americanas expõe fratura na governança e lança dúvidas sobre mercado varejista”, diz Jandaraci Araújo

Mariana Sgarioni | 24 jan 2023
A conselheira, professora de finanças corporativas e escritora Jandaraci Araújo.
Mariana Sgarioni | 24 jan 2023

Não há dúvidas: Jandaraci Araújo é uma mulher de exatas. Desliza sobre os números com uma leveza que impressiona (sobretudo quem é de humanas, como esta jornalista). E foi com a sabedoria de quem faz contas desde cedo que ela proferiu, ao comentar o rombo de R$ 20 bilhões descoberto recentemente nas contas das Lojas Americanas:

“Não existe contabilidade criativa. Excesso de criatividade em exatas vai dar errado. O profissional de finanças não é artista plástico. Ele deve seguir normas, regras, a regulamentação vigente. Quando isso não acontece, o resultado é catastrófico”.

Jandaraci é uma voz eloquente entre os consultores financeiros do mercado brasileiro e internacional. Além disso, ela atualmente também é conselheira emérita do Instituto Capitalismo Consciente Brasil, conselheira independente do Instituto Inhotim e Tomie Ohtake, da Women in Leadership in Latin America (WILL), palestrante, professora de finanças corporativas de pós-graduação, e escritora. Foi subsecretária de Empreendedorismo, Micro e Pequenas Empresas do Estado de São Paulo e diretora executiva do Banco do Povo Paulista. Possui MBA em finanças e controladoria pela Fundação Getúlio Vargas, MBA Executivo pela Fundação Dom Cabral, e se especializou em gestão estratégica pela Business School e Inteligência Competitiva pela ESPM São Paulo. É co-fundadora do Conselheiras 101, programa que visa a inclusão de mulheres negras em conselhos de administração, e foi uma das convidadas a falar na ONU no ano passado.

O extenso currículo foi construído passo a passo, às custas de muito trabalho e investimento. Caçula de uma família de seis irmãos, a baiana Janda, como é conhecida, foi ensinada pelo pai a gerir, calcular e cuidar bem do dinheiro – ainda que ele fosse escasso. No início da carreira, ela vendia salgados nos trens do Rio de Janeiro para sobreviver. “A gente só acredita em negócio quando pensa em milhões. Mas todo mundo faz negócio. E eu sempre tive metas, tudo que ganhava era anotado, dividido, calculado. Por exemplo: preciso vender um número X de empadas para pagar meu curso. E assim fazia”, conta.

Nos últimos anos, Janda passou a atuar no mercado financeiro com atenção à sustentabilidade e ESG. Na entrevista a seguir, ela fala sobre carreira, investimentos, a importância do G de governança, comenta sobre o rombo financeiro das Lojas Americanas e, de quebra, pincela um pouco as experiências de sua própria vida.

NETZERO: Em suas palestras, você fala muito em “investimentos com propósito”. Estamos diante de uma nova forma de fazer negócios?

JANDARACI ARAÚJO: O modelo de negócios do lucro pelo lucro já deixou de fazer sentido há algum tempo. Quando pensamos em negócio de impacto estamos falando deste conceito: qual o propósito que você está investindo? Tem que gerar lucro, sim, mas com impacto social. Não se trata de algo novo. Temos uma lei datada de 1976, a lei 6.404, que descreve as SAs (Sociedades Anônimas). Este é um marco da governança no Brasil. Está escrito ali que a companhia tem que cumprir a função social – tanto com os empregados como também com a comunidade. Ou seja, ESG vem ganhando nova roupagem, mas não é novo. 

Por que você acha que só nos últimos anos que o ESG vem sendo mais implementado?

Agora já é possível entender que a sustentabilidade é também econômica. É isso que temos propagar mais: não se trata de fazer da empresa um centro de caridade ou abraçar árvore. Estamos falando da sustentabilidade da organização.

“A gente não vende pra robô. A gente vende para pessoas. A extrema desigualdade acaba chegando num ponto em que é ruim para os negócios. E tudo começa na governança. Se isso não está não está claro, vai haver washing“.

O papel da governança é ser o guardião de tudo, é onde tudo começa. O papel do conselho é fundamental, de alinhar as estratégias com as lideranças inclusive o papel social das empresas. Um exemplo bobo: se eu não fizer uma análise de impacto na sociedade, no meio ambiente, como vou construir uma fábrica? Outros negócios subjacentes à aquela fábrica serão criados ali. Portanto haverá todo um impacto na comunidade e isso deve ser avaliado.

Então, se vou falar de ESG, vamos começar por governança? Vamos estruturar essa governança para que ela seja alicerce para os projetos ambientais e sociais. Ela é estrutural, é o telhado da casa.

O que aconteceu com o telhado das Lojas Americanas?

(risos) Quando pensamos na dinâmica de governança, estamos falando de um conjunto de fatores em que algo pode ter passado despercebido. Na questão da remuneração dos executivos das Americanas, por exemplo, a governança teve atuação direta. Temos colegiados ali que podem ter apresentado falhas. Daí a importância de haver sempre conselheiros independentes. Sou conselheira fiscal – quando se contrata uma auditoria, você contrata para ter segurança de avaliação de contas. O conselho não toma decisões do dia a dia, mas ele é fundamental para que se sigam as questões normativas. Entretanto, temos que ter muito cuidado ao falar sobre isso, analisar os documentos antes, e saber o que estava nas atas para saber se alguém do conselho ou da auditoria questionou. Não temos isso, portanto não há como julgar.

Mas houve problemas evidentes.

Transparência é algo que faltou. Olhando de fora, com todo cuidado, temos pontos que aparentemente ficaram enfraquecidos e evitariam essa situação: a parte ética, a transparência, a gestão de riscos e a participação do comitê de riscos. O rombo não foi no balanço de um ano apenas. Foram anos e anos. Durante este tempo, ninguém viu? Aí vem a questão da transparência. 

O que mais deve ser visto a partir deste caso?

Penso no quanto o nosso mercado varejista está exposto. Porque Lojas Americanas não é o primeiro caso. Houve Ricardo Eletro, Mappin, Mesbla, Lojas Colombo e por aí vai. Tem uma questão de setor que precisa ser olhada, uma similaridade nos problemas.

Não dá para sair acusando as pessoas deliberadamente. Está claro que houve um rombo, mas não podemos falar só do conselho. É um conjunto. Trata-se de um colegiado. Mas fica mais claro que dava para ter evitado: não existe contabilidade criativa. Excesso de criatividade em exatas vai dar errado. O profissional das finanças não é o artista plástico. Tem normas, regras, regulamentação. Não deu resultado esperado? Coloca-se em prática um plano de recuperação. Precisa de transparência. No quesito da remuneração dos executivos, o principal ponto falho, já havia uma bandeira levantada.

Quem mais sai perdendo no final?

Os investidores que não tinham conhecimento. A gente está vendo a crise das cripto, por exemplo. É preciso ainda investir muito em educação financeira. Bolsa de valores é isso. Não existe garantia de ganho. Pode estar tudo bem hoje, então cai uma bomba do outro lado do mundo, e você vai perder dinheiro. Por isso não se coloca todos os ovos na mesma cesta, é preciso diluir os investimentos. É o que a gente chama de carteira. A Febraban tem feito um esforço imenso no sentido de educar, mas a maioria da população não tem acesso a tantas informações. O pequeno investidor, no caso das Americanas, foi induzido ao erro.

Você sempre soube investir?

Sim. Meus pais eram pessoas simples, mas com uma visão muito clara de como gerir e lidar com dinheiro. Eles sempre tiveram uma poupancinha. Quando fui vender salgado, era por sobrevivência. Mas eu tinha metas. Consegui estudar e fazer tudo com minhas vendas. Não se trata de meritocracia. E sim de organização. Eu tinha metas: devo vender tantas empadas, risoles ou coxinhas para conseguir o que precisava. Tirava um salário mínimo, pagava o plano médico das minhas filhas, e investia tudo em educação. É o que meu pai dizia: conhecimento ninguém te tira. E outra lição é, quando se tem um negócio, saber a hora de sair a tempo. Eu saí. Aliás, isso serve para tudo: trabalho, emprego, empresa, sociedade. Até para casamento. (risos)



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