Boi com ficha completa: como uma startup quer garantir carne certificada usando tecnologia para monitorar gado no campo

Marco Britto | 24 jun 2022
Thiago Parente, CEO da iRancho. (Foto: Divulgacão)
Marco Britto | 24 jun 2022

Como um frigorífico pode ter garantia sobre a origem da carne que está comprando? Como saber se está pagando mais por um animal que realmente teve todos os cuidados relativos à saúde, bem-estar e sustentabilidade? Iniciativas de rastreamento animal não são novas no Brasil. Porém, em duas décadas de esforços, o país ainda trabalha para construir um registro detalhado de seu rebanho, calculado pelo IBGE em mais de 218 milhões de cabeças de gado, sem contar aves e suínos, entre outros animais.

Apostando na simplificação de processos, a empresa iRancho coloca em operação em julho o Safe Beef, uma plataforma gratuita de rastreamento que deve entregar ao produtor e aos players do mercado da carne uma “ficha completa” da vida dos bois, garantida por tecnologia blockchain, que deve servir como certificação para transações comerciais entre produtores e também para seguradoras e frigoríficos.

O monitoramento de dados em uma interface simples é apresentado como grande trunfo do produto. O objetivo, como explica o CEO da iRancho, Thiago Parente, é poder chegar ao momento da venda do animal com um registro centralizado e completo de todos os dados relevantes.

Assim, é possível certificar o boi como livre de antibióticos, carbono zero, orgânico e outras classificações que dependem de procedimentos específicos na alimentação, manejo e também dos locais onde o gado passa, para evitar carne proveniente de desmatamento ilegal ou áreas ocupadas irregularmente, por exemplo. Para cada certificação dessa, a empresa pretende firmar parcerias com grupos especializados autorizados.

A pecuária, principalmente na região da Amazônia Legal, é repetidamente apontada como maior causa de desmatamento ilegal, quando florestas protegidas por lei dão lugar a pastagens clandestinas – algo que a certificação usando georreferenciamento pode combater. 

A tecnologia Safe Beef será integrada primeiramente à plataforma de gestão de fazendas iRancho, já comercializada pela empresa e com 2.500 fazendas e 2 milhões de cabeças de gado registradas. Até o fim do ano deve ter um aplicativo próprio para uso gratuito, e ainda sincronização homologada com outras plataformas de gestão similares do mercado, concorrentes da empresa.

Com os certificados garantidos pelos dados seguros do Safe Beef, que agregam valor na venda dos animais aos frigoríficos, a startup de Goiás planeja ganhar uma fatia do bônus pago pela qualidade da carne.

Há ainda a possibilidade de vários níveis de certificação a depender da rastreabilidade, garantida por blockchain e assinada digitalmente pelo proprietário, o que dá segurança jurídica ao negócio sobre a veracidade das informações, pois torna mais fácil detectar e punir fraudes. “Nosso dinheiro está no sucesso do pecuarista. Se eu conseguir trazer mais dinheiro pra ele, nossa ideia é pegar 25% do valor da comissão”, afirma Parente.

SISTEMA DEVE ESTIMULAR BOAS PRÁTICAS NO CAMPO

Parente vê o Safe Beef como um sistema que vai evidenciar as boas práticas ESG do pecuarista responsável. “A gente gera um estímulo positivo, para quem faz bem-feito mostrar o que faz, e que acaba penalizando quem faz mal feito”, diz o CEO.

“A questão da governança, da imaturidade da pecuária com sistemas de gestão, precisa ser contornada. A atividade vem se intensificando, e quando você tem uma pecuária qualificada, pode ter uma grande redução na emissão de carbono sem pressão pela abertura de novas áreas, o que hoje impulsiona o desmatamento.”

Para aderir ao Safe Beef, os proprietários devem estar cadastrados no Sisbov, cadastro nacional do governo federal, ou no ICAR (Comitê Internacional para Registro Animal), sistema usado como referência nas exportações.

Uma vez inseridos no sistema da iRancho, os dados passam a ser atualizados no manejo diário dos animais, usando tecnologias muitas vezes já instaladas no campo, como bastões de leitura digital de brincos usados pelo gado para identificação, que funcionam como um “CPF” do boi.

No curral, dados sobre peso, vacinação, alimentação e deslocamento são atualizados e vão preenchendo o histórico de cada animal separadamente, o que deve acompanhá-los até o abate e mesmo depois, em uma situação ideal, com a identificação da carcaça, até a prateleira do supermercado.

Segundo o executivo, a ideia ganhou corpo com a base de dados do iRancho, quando Parente percebeu que era possível obter mais de 500 atualizações sobre a vida de um único boi, proporcionando um nível de detalhe que, uma vez garantido por assinatura digital, dará base a certificações importantes para o meio ambiente e lucrativas para o pecuarista e para a empresa goiana.

NECESSIDADE DE MODERNIZAR A GESTÃO DA PECUÁRIA

Assim como a proposta da plataforma iRancho, o Safe Beef elimina o trabalho de tabulação dos dados, que muitas vezes são controlados em planilhas simples no computador ou mesmo em livros ou “papel de pão”, como brinca o CEO da empresa sobre a necessidade de modernização da gestão brasileira na pecuária. A diferença é que, enquanto o Safe Beef mira apenas a questão de rastreamento, a plataforma iRancho engloba toda a gestão da propriedade rural em uma única interface.

Toda a elaboração e a comunicação dos produtos da empresa destacam a forma simples de usar os aplicativos, pensados para o trabalhador rural, seja o trabalhador, o proprietário ou o consultor do agro.

“O pecuarista é geralmente uma pessoa conservadora, de mais idade e que resiste à tecnologia. Nós precisamos criar essa zona de conforto, essa segurança pra ele usar. Cerca de 90% dos fazendeiros não usam um sistema digital de gestão. Por isso precisamos ter essa ênfase na experiência do usuário.”

Na visão do CEO da iRancho, a rastreabilidade animal praticamente não saiu do papel no Brasil. A adesão ao Sisbov, sistema tido como referência, não é obrigatória. Publicações do agronegócio frequentemente citam a falta de compromisso do pecuarista em fornecer todas as informações sobre o gado. ”Nem 5% do rebanho nacional é rastreado. Nem o governo sabe quantos animais tem no Brasil”, calcula Parente, que trabalhou com a JBS nos Estados Unidos, onde percebeu a demanda por rastreamento.

NetZero consultou o Ministério da Agricultura e Pecuária para confirmar a base cadastral de cabeças de gado no Sisbov, mas não obteve resposta até a conclusão desta reportagem.

A segurança jurídica das certificações também pode abrir mercado com seguradoras do agro, que muitas vezes carecem de comprovações sobre os rebanhos. “Eles dizem que seguram centenas de milhares de cabeças e nem sabem se existe, pagam sinistro baseados em fotos de animais mortos”, relata o CEO da iRancho.

STARTUP CRESCE EM ALTA VELOCIDADE

O executivo vem comemorando bons resultados na startup, que cresceu 300% no último ano, girando R$ 3 milhões em faturamento. Para 2023, a empresa pretende expandir sua atuação também fora do Brasil e chegar a R$ 5 milhões com a plataforma iRancho e R$ 600 mil adicionais de receita com o Safe Beef. “Um sinal de que a pecuária está aderindo à tecnologia”, observa Parente.

Na comercialização do iRancho, os usuários pagam mensalidades que vão de R$ 187 a R$ 1.069 mensais, a depender do número de animais registrados. Os clientes se concentram no Brasil, mas estão também no Paraguai, Bolívia, Estados Unidos, Inglaterra e México, o que coloca nos planos da empresa a tradução do site para inglês e espanhol. São rebanhos em outros países e também proprietários que monitoram do exterior suas fazendas no Brasil.



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