Como um modelo inédito na América Latina de usina de lixo pode dar fim aos lixões e gerar energia através da queima de resíduos

Julia Moioli | 30 dez 2021
Projeto de usina de lixo em Nova Odessa, em São Paulo. (Crédito: Reprodução)
Julia Moioli | 30 dez 2021

Dos restos do café da manhã às sobras do jantar, cada brasileiro gera aproximadamente 1 kg de resíduos sólidos urbanos por dia, segundo dados do Ministério do Meio Ambiente. Cerca de um terço de tudo isso tem como destino lixões, os segundo maiores geradores de gases do efeito estufa, atrás apenas da queima de combustível fóssil.

Embora os aterros sanitários já sejam considerados soluções obsoletas há décadas e proibidos em países como Alemanha, Suíça, Dinamarca e Noruega, o Brasil ainda tem mais de 2.500 deles em funcionamento, espalhados por quase metade dos municípios do país, segundo dados setoriais. A própria legislação nacional já estabelece há mais de dez anos que o lixo passe por um pré-tratamento antes de chegar aos aterros. Na prática, isso não acontece.

Mas com o novo Marco Legal do Saneamento Básico, de 2020, os investimentos em tecnologias mais limpas devem aumentar nos próximos anos. Uma das primeiras iniciativas será a Unidade de Recuperação Energética (URE) de Nova Odessa, em São Paulo. 

Conhecida como “usina de lixo”, a URE já se consolidou em países como Estados Unidos, Alemanha, França, Áustria, Austrália, China e África do Sul. Há cerca de 2.500 similares no mundo, de diversos portes, mas o modelo ainda é inédito na América Latina.

A primeira unidade brasileira está prevista para entrar em operação no município de Nova Odessa, no segundo semestre de 2022, em regime de consórcio entre sete municípios vizinhos (Capivari, Elias Fausto, Hortolândia, Monte Mor, Nova Odessa, Santa Barbara d’Oeste e Sumaré), que juntos somam mais de 900 mil habitantes. A missão é urgente: a maioria dos aterros da região metropolitana de Campinas, São Paulo, onde será instalada a unidade, está no fim de sua vida útil.

Isso significa que, em um futuro muito próximo, as prefeituras da região não terão para onde levar seus resíduos sólidos. “Estamos falando de algo como 70 toneladas de lixo por dia”, dimensiona o engenheiro elétrico e mentor do projeto Antonio Bolognesi, CEO da WTEEC Engenharia e Consultoria.

“A solução para os resíduos sólidos que hoje ainda vão parar em aterros sanitários no Brasil deve ser compatível com o tratado assinado pelo Brasil na COP26: não pode gerar gases de efeito estufa e precisa estar alinhada com as responsabilidades de preservação do planeta e com a questão das mudanças climáticas.”

MENOS EFEITO ESTUFA, MAIS ENERGIA GERADA

A URE é mais vantajosa para o meio ambiente porque não permite que a decomposição da matéria orgânica, que produz os gases de efeito estufa, aconteça. Sua tecnologia é a única que consegue mitigar as emissões dos aterros.

O saquinho de lixo que você descarta na sua casa será levado pelo caminhão e depositado em um fosso capaz de armazenar os resíduos das sete cidades por uma semana. A usina não receberá lixo perigoso, como materiais industriais.

Aos poucos, uma espécie de guincho com garra transferirá o lixo do fosso para uma fornalha, onde ele será incinerado a uma temperatura na faixa de 1.000 graus, sem o uso de nenhum combustível. Todos os gases poluentes gerados pela queima serão tratados por meio de processos químicos.

“O que sai pela chaminé é água em forma de vapor”, garante Bolognesi. “Só para se ter uma ideia, uma planta da mesma companhia que fornecerá tecnologia para nosso empreendimento, no estado da Flórida, nos EUA, passou por uma medição do órgão ambiental local e concluiu que o que sai da chaminé é melhor do que o ar respirado do lado de fora.”

Antonio Bolognesi, CEO da WTEEC. (Crédito: Divulgação)

O resíduo resultante da queima, no fundo da fornalha, é uma espécie de areia grossa chamada de escória. Ela será separada dos metais (enviados para reciclagem) e poderá ser utilizada na construção civil. Já o calor produzido durante as 24 horas diárias de funcionamento da usina acionará uma turbina capaz de gerar energia elétrica suficiente pra abastecer metade da população dos sete municípios do consórcio.

“Hoje, o potencial de produzir energia para a metade da população da região de Campinas está sendo perdido, colocado embaixo da terra nos aterros, gerando gases de efeito estufa. A vantagem ambiental da URE é brutal.”

A Associação Brasileira de Recuperação Energética de Resíduos (Abren) estima que, no Brasil, quase 80 milhões de toneladas de lixo por ano poderiam funcionar como fonte de energia, como já acontece em vários países. Temos potencial para a instalação de mais de 120 unidades geradoras de energia a partir do lixo.

A Unidade de Recuperação Energética elimina ainda outras consequências indesejadas dos aterros: mau cheiro, contaminação do solo e de lençóis freáticos e presença de animais, como urubus, moscas, baratas e ratos, que comprometem a saúde pública. Tudo sem contato humano.

CONTRATOS DE LONGO PRAZO ESTIMULAM INVESTIMENTO

O projeto em Nova Odessa só foi viabilizado em decorrência do Marco Legal do Saneamento Básico de 2020, que alterou pontos vitais na legislação brasileira. Uma dessas mudanças, por exemplo, estabeleceu que os contratos para tratamento de lixo nos municípios devem ser de longo prazo. Isso oferece às empresas tempo suficiente para amortizar investimentos maiores. Na região de Campinas, por exemplo, o contrato é de 30 anos.

Outro ponto importante foi a eliminação de contratos sem licitação. Além disso, pela nova lei, o valor cobrado do contribuinte vai diretamente para o concessionário, e o cidadão poderá cobrar o que está sendo feito. O prestador de serviço também vai se integrar na comunidade, o que, segundo Bolognesi, é extremamente positivo.

“Ainda não percebemos bem os efeitos diretos do Marco Legal do Saneamento Básico de 2020 por causa da pandemia de Covid-19, mas em breve surgirão muitos projetos de tratamento de esgoto, água e lixo. Em 20 anos, o Brasil será outro país por causa dessa lei, que talvez seja uma das mais importantes em décadas. Ela vai mudar a qualidade de vida.”

USINA TERÁ LINA DE RECICLAGEM PARA CATADORES

A transformação social do entorno das UREs pelo mundo tem se mostrado uma característica marcante. Além da usina em si, esses projetos incluem educação ambiental e trabalho social – e, promete Bolognesi, não será diferente no Brasil. Está na pauta do empreendimento de Nova Odessa um programa permanente de educação ambiental em escolas, com oficinas.

Além disso, no mesmo terreno da usina, será instalada uma linha de reciclagem para os catadores, que também serão capacitados para aumentar sua eficiência. Nos outros seis municípios servidos pela URE, outras cooperativas também construirão seus galpões de trabalho. Isso significa que o lixo reciclável não será queimado ou perdido.

Todos esses investimentos devem atrair para a região mais empresas interessadas em estimular e fortalecer sua agenda ESG, fundamental para o alinhamento com questões de sustentabilidade.

“Existe uma preocupação para que a comunidade no entorno do empreendimento melhore de padrão em termos educacionais, sociais e ambientais. No mundo inteiro, onde se instala uma URE, a cara da região muda.”



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