Instituto Iguá vai investir em startups para ajudar a tirar o Brasil de “cenário medieval” no saneamento básico

Renato Essenfelder | 12 jul 2022
Renata Ruggiero Moraes, diretora presidente do Instituto Iguá. (Foto: Divulgação)
Renato Essenfelder | 12 jul 2022

Considerada um dos desafios mais complexos e talvez menos discutidos do Brasil, a questão do saneamento básico e do acesso à água ganhou destaque com a pandemia do novo coronavírus. Ao mesmo tempo que as campanhas de saúde enfatizavam a importância de lavar as mãos constantemente, especialistas apontavam um entrave incontornável: 17% da população, o que equivale a 35 milhões de brasileiros, simplesmente não têm acesso à água tratada. “É um cenário quase medieval”, critica Renata Ruggiero Moraes, diretora presidente do Instituto Iguá.

Criado há cerca de quatro anos pela Iguá Saneamento e pela IG4 Capital, o Instituto Iguá busca justamente fomentar soluções que ajudem a modernizar esse cenário. Embora o país esteja entre as 20 maiores economias do mundo, no ranking de saneamento básico aparece apenas na longínqua 123ª posição.

Em relação a isso, o Instituto Iguá adotou uma estratégia diferente em relação a outras iniciativas do tipo. “A gente trabalha para a causa do saneamento de forma mais ampla. Não atuamos sozinhos nem fazemos obras diretas, ao contrário de outros institutos que têm como lógica adotar uma causa ligada à mantenedora e usar um orçamento dela”, diz Moraes. E explica: “Nós atuamos para mobilizar doações e capital de outras empresas e organizações, além da própria Iguá Saneamento. Por sermos especialistas no tema, temos mais capacidade de entender necessidades, avaliar iniciativas e mensurar o impacto”. Assim, o instituto se organiza essencialmente uma organização articuladora de iniciativas de água e saneamento.

Nesse espírito, o Instituto Iguá constituiu um fundo, em parceria com outras organizações, para apoiar projetos de startups e organizações sociais. Em junho, o fundo fez sua primeira chamada de fomento, como parte do programa Conexões Onda Verde, da Climate Ventures. Contou com 28 inscritos. Agora, o comitê do Fundo IPU vai selecionar até cinco desses candidatos para contar com apoios que vão desde acompanhamento personalizado e treinamentos até aportes consideráveis, que podem chegar a R$ 400 mil por startup.

Por que startups? Moraes diz que o setor, especialmente a partir da aprovação do novo marco do saneamento, tem muito espaço para inovação – e, em relação a isso, diz-se otimista, apesar de não negar os desafios imensos pela frente.

Veja a seguir os principais trechos da entrevista que Moraes concedeu a NetZero.

NETZERO: Por que o Instituto Iguá decidiu não fazer investimentos diretos em saneamento, mas sim apoiar iniciativas de empreendedores?

RENATA MORAES: Precisamos promover inovação nesse campo. Percebemos que por um lado há várias start-ups de impacto sendo criadas que têm dificuldades de avançar e, por outro lado, os fundos de investimento de impacto são poucos e reclamam que não encontram negócios maduros para investir. Então quem atua nesse meio de campo? Como fazer as startups com potencial passarem pelo vale da morte, aquele período critico com zero de apoio? Como ajudar alguns desses negócios, que possuem bons modelos, mas que talvez não tenham o mesmo timing que o mercado espera para retorno?

Como vocês podem ajudar esse tipo de negócio?

Decidimos criar um fundo, o IPU, que tivesse esse papel de ser um veículo, jurídico e financeiro, para institucionalizar a mobilização de capital de diversos investidores. IPU é um termo tupi que quer dizer ponte original da água, origem da água. A ideia do fundo é selecionar bons negócios de impacto ligados à água e saneamento e fazer três coisas: apoiar os negócios com o chamado capital paciente, que é comprometido com o desenvolvimento do negócio e não espera retorno no mês seguinte; apoio não financeiro, que ajuda esses negócios em um processo de aceleração customizado, tendo como centro o empreendedor e os desafios únicos de cada negócio, pois não temos um processo de prateleira para todos; e a avaliação de impacto, que ajuda os negócios a saberem que impacto estão gerando para o campo.

Quando foi criado o IPU?

No fim de 2020, bem no contexto da pandemia.

E de que maneira esse contexto impactou o fundo?

O tema da água ganhou muita visibilidade. As campanhas diziam a todo momento “lavem as mãos”, mas 17% da população simplesmente não tem acesso à água e está invisibilizada nessa questão. Por outro lado, essas medidas concorreram com outras também urgentes, como doação de cestas básicas. Foi um período difícil.

Como é a gestão do fundo? O Instituto Iguá é quem toma as decisões?

Desde o início pensamos que o fundo não seria do Instituto Iguá, seria da causa. Então a gente decidiu colocar energia e um “seed money” para estruturar o fundo, mas tínhamos a visão de que não seríamos nem gestores nem operadores dele. Então buscamos três parceiros-chave: a Climate Ventures, gestora programática do IPU, que faz a operação, relacionamento, acompanhamento, avaliação de impacto; a Sitawi, que é gestora financeira do fundo, gere entrada e saída de recursos, mexe no dinheiro; e o escritório Tozzini Freire, nosso assessor jurídico.

Hoje o fundo é “filantrópico rotativo”, ou seja, a gente capta recursos como doação. Temos duas possibilidades de apoio: doação ou empréstimo com juros baixos, corrigidos só pela inflação, e prazos estendidos. Ou ainda um mix dessas duas soluções. Quando fazemos empréstimo, o dinheiro que volta não vai para o doador original, e sim para novos negócios.

“Nossa visão de futuro é aumentar o volume de captação e evoluir para uma estrutura de “blended finance”: atender a quem quer doar e a quem quer investir e ter retorno, ainda que abaixo do mercado. Hoje só podemos receber doações.”

Vocês acabam de fazer a primeira rodada de apoio a startups de água e saneamento. Como foi esse processo?

A Climate Ventures mantém o programa Conexões Onda Verde, que seleciona startups com iniciativas benéficas para o clima em várias frentes. O que a gente fez correalizar a chamada para negócios de água e saneamento dentro do Conexões Onda Verde.

Foi a primeira chamada de que participamos. Recebemos 28 inscrições, que agora vão passar pela banca do comitê do IPU. Esse comitê vai selecionar de 3 a 5 negócios para participarem da aceleração de julho a novembro e ao final do período vamos ter conhecido mais esse negócio e ter uma segunda avaliação em relação a quais desses negócios têm potencial e em quais queremos investir.

De quanto é o apoio do fundo a essas startups?

O fundo IPU olha para valores entre R$ 200 mil e R$ 400 mil por startup. Não pegamos ideias que não estão operando nem negócios que estão superestruturados e que poderiam recorrer a fundos de impacto. Queremos ajudar negócios que estão operando mas têm desafios.

A chamada de startups foi direcionada para algum tema específico?

Não fizemos ainda uma chamada direcionada, o que não nos impede de fazê-lo futuramente. Pode acontecer de um investidor patrocinador querer uma chamada específica para uma região ou problema ligado à água e saneamento.

Quais são os principais problemas do Brasil hoje, em saneamento?

“Um dos principais é o acesso à água e à coleta de esgoto. Temos índices horríveis, 17% da população sem acesso à água, 47% da população sem acesso à coleta e tratamento de esgoto, quase metade do Brasil. Há capitais de Estado inteiramente construídas sobre fossas, com apenas 2% de coleta. É um cenário quase medieval.”

Quais são as consequências disso?

Esse tema é sistêmico. Uma criança em área com esgoto a céu aberto fica doente, então falta à escola, a mãe falta ao trabalho, a criança precisa ir ao sistema de saúde para se tratar. Isso sem falar nos efeitos no ambiente, na poluição. Na questão do acesso, um dos principais desafios ainda é como chegar a áreas mais afastadas, o saneamento rural. Nos centros urbanos o marco do saneamento vai fazer avançar a cobertura, o desafio é em cidades pequenas, sem viabilidade econômica, e em comunidades rurais.

Quando a gente olha para os 35 milhões de brasileiros sem acesso à água, 20 milhões estão nesse universo, e outros 15 milhões em cidades. Por isso precisamos buscar soluções descentralizadas de coleta e tratamento, não faz sentido conectar cidades pequenas e afastadas a grandes metrópoles. Temos que ter soluções locais.

“Outro desafio é o índice de perda d’água, que hoje é de 38% ao longo do processo todo. O que perdemos de água poderia abastecer a parte onde falta. Do ponto de vista socioambiental e econômico é um enorme impacto.”

Por que o IPU tem esse foco em startups?

A gente não entende que este é o único caminho necessário, mas sim que é uma de várias soluções. As startups têm mais agilidade na concepção de inovações e no teste delas, têm essa capacidade de buscar soluções diferentes. Apostamos nossas fichas nisso sabendo que existe muito a ser feito. Cabe ressaltar que o fundo contempla tanto negócios de impacto socioambiental quanto organizações sociais que trabalhem em um modelo de sustentabilidade, como uma cooperativa.

Onde você vê espaço para inovação no setor de saneamento?

A gente vive hoje, no setor de saneamento, um momento propício para inovação. O modus operandi do saneamento é o mesmo há décadas: grandes estações e redes que envolvem grandes obras. Quando olhamos historicamente, o setor está muito concentrado em empresas públicas, o que não é bom nem ruim, desde que sejam bem geridas. As empresas privadas antigamente eram ligadas a empreiteiras e com a crise foram compradas, separaram-se das empreiteiras e passaram a ter uma operação que não ganhava mais com obras, e sim com serviço. Com isso, tiveram que melhorar o serviço. Agora, o
marco do saneamento aumentou a competitividade e possibilitou às empresas sair na frente para ter um serviço mais bem prestado.

Qual é a sua avaliação sobre o novo marco do saneamento?

O marco no geral é positivo para o país. Quando a gente olha o volume de investimento necessário para universalizar o saneamento no Brasil, de R$ 500 bilhões a R$ 700 bilhões, sabemos que o setor público não tem todo esse capital. O marco abre a possibilidade de esse capital vir do setor privado. Claro, isso só vale se os leilões e contratos forem bem estruturados, de forma a garantir a prestação adequada. Também é positivo permitir novos arranjos institucionais, como PPPs, que antes eram muito engessados. Com esse novo arcabouço é possível criar coisas interessantes do ponto de vista econômico e social.

E onde não houve avanço?

O marco não olhou para a questão do saneamento rural. Não olha de forma ampla e profunda para lugares que não têm viabilidade econômica. Nesse sentido, as startups, conseguindo se estruturar e funcionar, vão poder prestar serviços para os municípios, com soluções que podem ser tecnicamente boas e acessíveis.

Os desafios, como você mencionou, são multibilionários. Você é otimista em relação ao futuro?

Sou otimista, acho que estamos avançando. Se a gente pega dez anos atrás, nem se falava sobre isso. O tema hoje tem mais visibilidade do que tinha, e o marco trouxe avanços, ainda que não seja suficiente. Não é um desafio simples, porque o tema parece distante, como se as pessoas físicas não pudessem interferir muito. Você sabe qual foi o plano de saneamento do seu último candidato, por exemplo?

“À medida que a sociedade abraçar isso, o setor público vai criar condições para avançarmos. Mas isso não vai ser rápido, não dá para imaginar que em dez anos vamos universalizar o saneamento. Teremos de fazer um esforço enorme, especialmente para atender o público que está no final da fila, em uma realidade muito precária.”



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