“No Nordeste, uma placa solar pode mudar a vida de uma criança”, diz Ricardo Cavalcante, da Federação das Indústrias do Ceará

Mariana Sgarioni | 26 ago 2022
Ricardo Cavalcante, presidente da Fiec (Federação das Indústrias do Estado do Ceará). Foto: Marilia Camelo
Mariana Sgarioni | 26 ago 2022

Uma energia fabricada a partir de fontes limpas, renováveis e, o que é melhor, abundantes no Brasil. Pode ser armazenada e transportada para onde for necessário. Este é o sonho do hidrogênio verde, que povoa os pensamentos de Ricardo Cavalcante, presidente da Fiec (Federação das Indústrias do Estado do Ceará). Ele pretende transformar o Nordeste brasileiro – que esbanja sol e vento, bases para a captação de energia fotovoltáica e eólica – na “Opep do hidrogênio verde no mundo”, como gosta de brincar.

Cavalcante atua há mais de 30 anos no setor industrial. Desde 2019, quando assumiu a Fiec, vem trabalhando insistentemente para viabilizar o funcionamento primeiro eletrolisador do Nordeste e iniciar a produção – e exportação – de energia a partir do hidrogênio verde. Hoje ele já conta com investimentos na casa dos US$ 20 bilhões para os próximos 4 anos. A expectativa é que a usina esteja em funcionamento em 2025.

“É preciso entender que o Nordeste tem uma condição diferenciada de todo o planeta: temos ventos e sol constantes, não temos maremotos, nossos profundidade baixa, o que facilita para colocar torres. É o melhor lugar do mundo de energia solar e eólica para a produção do hidrogênio verde”.

Na entrevista a seguir, Cavalcante explica, com entusiasmo, de que forma esta revolução energética já está acontecendo no Estado do Ceará, o potencial de toda a região para abastecer todo o Brasil e outros diversos países, e como a produção vai transformar a vida da população mais carente do interior.

NETZERO: Por que produzir hidrogênio verde?

RICARDO CAVALCANTE: Em primeiro lugar, é importante lembrar que, atualmente, 73% das emissões de carbono são gastas para a produção de energia como é feita hoje. Precisamos reduzir isso porque o prazo está apertando e todos sabemos. O setor elétrico brasileiro é dos que menos emitem gases do efeito estufa no mundo – 85% menos do que a China, por exemplo. Ainda assim, precisamos encontrar uma alternativa. O hidrogênio verde é algo muito simples: é pegar e separar os elementos hidrogênio e oxigênio na mólecula da água, conhecida como H2O – inclusive, este processo, na química, é muito antigo. Para fazer isso, precisamos de energias renováveis, cujos preços despencaram no Brasil nos últimos anos (63% a solar, e 45% a eólica).

E por que o Nordeste?

É o melhor lugar do mundo de energia solar e eólica para a produção do hidrogênio verde. Temos a complementaridade entre o sol e o vento durante o dia e a noite para a máquina trabalhar 24 horas. Nossos ventos e sol são constantes, não temos maremotos, nossos oceanos tem 20 metros de profundidade em média, o que economiza bastante na hora de instalar as torres de energia. O Brasil hoje consome 180 gigas com todas as indústrias que tem em funcionamento. O potencial de produção de energia somente fotovoltáica no Nordeste é de 28.500 gigas. No caso do Estado do Ceará temos um potencial de energia eólica de 880 gigas, só na parte terrestre. Na parte off-shore temos 12.228 gigas.

O Ceará, então, poderia abastecer o Brasil inteiro?

Com certeza. No Estado do Ceará, no momento, temos hoje 20 memorandos fechados com empresas multinacionais para a produções de hidrogênio verde que contam com investimentos de mais de US$ 20 bilhões de dólares para os próximos 4 anos.

O mundo descobriu que o hidrogênio verde oferece a possibilidade de levar energia de um lugar para outro sem a necessidade de tubulação.

Essa energia do Ceará será para exportação – hoje para a Europa. O Porto do Ceará, por exemplo, hoje tem uma parceria com o Porto de Roterdam (Holanda) – com isso, com isso toda a entrada da nossa produção será por lá. Essa guerra na Ucrânia, por exemplo, é uma guerra de energia. A Europa está passando por secas, queimadas, e muito mais por conta do clima. Daqui a pouco vai esfriar demais e os europeus precisarão de energia para o aquecimento. Com a dificuldade de obtenção do gás da Rússia, isso pode gerar um caos, que culmina na aceleração do processo do hidrogênio verde. Já nos antecipamos e isso já está acontecendo no Ceará.

E o Brasil não vai ficar com essa energia?

Vai sim. A parte de autogeração vem crescendo 100% ao ano em todo o país. O Nordeste hoje já produz o suficiente para suprir o Sul e Sudeste. O que vai acontecer é que teremos energia para exportação e também para consumo brasileiro. O potencial eólico e solar para produzir energia no Brasil é superior a 160 vezes as nossas necessidades. Portanto, temos muita energia, tanto para exportar, como para fabricar produtos verdes.

Qual será o impacto desta produção para o Nordeste brasileiro?

Vai ser uma revolução não só econômica como também social. Essas placas fotovoltáicas vão para o interior e estes moradores vão usar a energia para geração de renda e seu sustento. Você pega um Estado como o Ceará que tem 25% do seu território desertificado. Nada do que for plantado ali vai prosperar. Mas se você colocar uma placa solar lá, pode vender energia, e assim transformar a vida das pessoas.

Estas transformações serão nas regiões mais secas e mais pobres porque elas vão produzir ainda mais energia. Poderemos criar empregos dignos, sem depender da agricultura, apenas da produtividades das placas solares. Isso significa mudar a vida das pessoas, principalmente as mais necessitadas.

De que forma pretende fazer isso, ou seja: qual o caminho das pedras para chegar lá?

Em primeiro lugar, informando as pessoas, o que já estamos fazendo. Precisamos levar para as escolas públicas o conhecimento de que as torres eólicas e placas solares podem vir a pagar a faculdade de uma criança. Em segundo lugar, precisamos de qualificação profissional. O primeiro eletrolisador deverá começar a operar este ano. Há uma cadeia enorme para que ela produza, não adianta investir só nas máquinas e sim em quem vai operá-las. É um orçamento dentro do outro. Temos hoje 400 mil empregos só na indústria do Ceará, mas precisamos estar atentos na qualificação profissional do hidrogênio verde. Um outro ponto é que devemos atrair as empresas e investimentos para cá. No Ceará, temos a união do governo, com a universidade, o setor produtivo, e o porto. Nenhum de nós quer perder a chance de transformar o Nordeste no grande polo de descarbonização do planeta: queremos trazer empresários para entenderem que aqui o clima é diferente.

Como é este clima?

Hoje só de investimentos de multinacionais de vários países já anunciados no Ceará temos mais de US$ 20 bilhões para produzir 13 gigawatts de eletrólise em 2025. As empresas investidoras tem uma preocupação muito grande de ESG, este é um movimento sem volta. E as pessoas precisam entender a proporção o que isso significa.

Acredito que em breve seremos iguais aos Jetsons: não vamos ter posto de gasolina. Abasteceremos nossos carros com energia limpa, com hidrogênio verde. Hoje você vê aqueles carrinho bonitinhos elétricos da China, mas, para que eles existam, são usadas matrizes movidas a carvão. Faremos toda nossa indústria com energia verde. Temos que ter uma indústria forte a curto prazo neste sentido: quero um produto que não emita CO2.

*a partir de setembro, NetZero vai trazer uma série especial de reportagens e informações sobre transição energética. Não perca.



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