“Pessoas negras não têm reserva financeira por conta da baixa expectativa de vida”, diz CCO da Conta Black

Mariana Sgarioni | 16 ago 2022
Fernanda Ribeiro, presidente da Afrobusiness e CCO da Conta Black
Mariana Sgarioni | 16 ago 2022

A executiva paulistana Fernanda Ribeiro tem um olhar afiado para finanças e novos negócios. Tão afiado que ela foi uma das primeiras a chamar a atenção para o fato de o sistema bancário brasileiro simplesmente não funcionar para empreendedores e profissionais liberais negros. E, menos ainda, quando falamos na população negra e periférica – esta, frequentemente desbancarizada.

“Muitos de nossos clientes sequer conseguiam passar pelo constrangimento da porta giratória, e entrar num banco. Uma vez que entravam, finalmente, ouviam do gerente: seu negócio nunca vai dar certo. Ou seja: nada de crédito, nada de capital de giro”, diz Fernanda, presidente da Associação AfroBusiness, que promove a integração entre empreendedores e profissionais liberais negros, e cocriadora da Conta Black, que enfrenta os desafios de levar produtos e serviços a uma comunidade marcada pela exclusão. “Queremos bagunçar o sistema financeiro”, brinca.

Fernanda veio do mundo corporativo. Ex-executiva do setor aéreo, sofreu um burnout pesado, e precisou dar um tempo. Tirou um ano sabático e, durante este período, voltou seu foco para o empreendedorismo e para este segmento de mercado. “Gastamos muita sola de sapato para montar produtos customizados pensando nas demandas da população negra. Por exemplo: para quê nós vamos querer mais um cartão de crédito convencional que só traz mais dívidas? Nossos players precisam saber como enxergamos o dinheiro”, diz.

Aos 37 anos, vinda de uma família de sete mulheres, Fernanda hoje acumula prêmios e é reconhecida pela lista dos 50 profissionais a serem seguidos, segundo a Gama Academy. Aqui, em NetZero, ela conta, de que forma pensa a inovação, o empreendedorismo, a circulação do black money e a participação feminina em todo este sistema.

NETZERO: Como executiva, mulher e negra, de que forma você sentiu nas próprias experiências a necessidade de investir no Afrobusiness?

FERNANDA RIBEIRO: Sabemos muito bem o processo de uma pessoa preta no mundo corporativo. Temos que entregar muito mais do que os outros, provar que somos bons. Minhas jornadas de trabalho eram de 18 horas por dia. Acabei num burnout e precisei parar.

Meu processo de empreender nasce depois da minha transição de carreira. Esta jornada de transição era muito mais de escolher o que eu não queria fazer do que o que eu queria. Eu só sabia que não queria mais aquilo.

Fiz um ano sabático e aí nasceu a Afrobusiness para conectar empreendedores pretos, com um olhar mais voltado ao sistema financeiro. Entretanto, entendemos depois que nosso objetivo inicial de conectar empreendedores negros precisava de braço educacional. Queríamos gerar black money.

Qual a magnitude do black money no Brasil?

O termo nasceu nos Estados Unidos, que teve um processo diferente do Brasil no que diz respeito à formação de empreendedores. No Brasil, o movimento é mais recente, coisa de 30, 40 anos. O ápice é quando nasce a Feira Preta, há 20 anos.

Contudo, é importante lembrar que o black money aqui começa num berço feminino. As mulheres foram as primeiras pessoas escravizadas a serem libertadas. Elas vendiam comida para ajudar a comprar a alforria de outras pessoas. Até os dias de hoje, quando a gente olha o empreendedorismo negro no Brasil, ele ainda é majoritariamente formado por mulheres. Elas são chefes de família. Agora este empreendedorismo ganha um ar de sofisticação: estas mulheres estão saindo do mercado corporativo e passando a liderar.

Como você, certo?

Sim… [risos]. Olha, segundo o BID (Banco Interamericano de Investimento), o empreendedor negro tem o crédito negado 4 vezes mais do que o empreendedor branco. Assim eu e o Sergio (Sergio All) fundamos a Afrobusiness. O Sergio é empreendedor e aconteceu de ter o crédito negado há muitos anos. Naquele momento ele profetizou: “um dia vou ter meu próprio banco”. Demorou um tempo e chegamos nesta oportunidade, com a criação das fintechs, de chegar na Conta Black. Ela nasceu como conta digital, e era muito mais um meio do que um fim. Em 2020, a gente se posicionou como um hub financeiro. Trouxemos players para a mesa e montamos produtos juntos customizados pensando na população negra.

Que produtos seriam estes?

Qualquer produto ou serviço que a gente cria é pensando nas especificidades da comunidade negra. Primeiro, é importante entender a forma como estas pessoas enxergam o dinheiro.

Vivemos uma realidade em que, cada dia mais, jovens negros estão morrendo de diversas formas. Portanto, esta população não vê a necessidade de guardar dinheiro, uma vez que tem a expectativa de vida baixa.  Por que ter um plano financeiro se eu e meus filhos vamos morrer cedo? A maioria das pessoas negras não tem reserva financeira.

Outro exemplo: seguro de vida. É raro achar uma pessoa preta que tenha. Os seguros residenciais tradicionais também não contemplam a realidade das pessoas negras. Na Conta Black temos seguro que contempla enchente, por exemplo, esta sim uma realidade.

Como é o cartão de crédito da Conta Black?

Não temos cartão de crédito. A gente entende que o modelo utilizado hoje é um modelo de endividamento para a população preta, portanto não funciona.

De que forma você chegou a esta conclusão?

Gastando muita sola de sapato. [risos]Um dos nossos grandes valores é a proximidade. Precisamos estar próximos das pessoas para entendê-las. Antes da pandemia rodamos os 27 Estados ouvindo a população. Por isso nossa crítica ao sistema formal: quando a gente fala em negócio de impacto social, não adianta ficar fechado no ar condicionado em Pinheiros e achar que conhece as nossas necessidades. Nossos players nos escutam. A Mastercard é uma de nossas parceiras e estamos construindo, juntos, um produto de crédito com todas essas nuances. Eles entenderam que não vou botar mais um cartão no mercado para endividar as pessoas.

O que você entende por ESG?

A Conta Black já nasceu ESG, só com um S bem grandão. De todo modo, foi importante desenhar um plano para governança que não tínhamos. Veja: o processo de empreender das pessoas pretas é bem diferente das brancas. Startups lideradas por negros, como a nossa, demoram a receber créditos, nossas entrevistas com grandes fundos são catastróficas, enfim, você concorda que governança era uma das últimas coisas que pensávamos? Para nós o S era o mais importante. E o E contamos com iniciativas de curto, médio e longo prazo. Não ficamos repetindo termos da moda, tipo “créditos de carbono”, só porque todo mundo fala. Temos políticas efetivas.

Voltando à parte financeira, conte sobre sua família. Como ela se relaciona com o dinheiro?

Sou a quinta filha numa casa de 7 mulheres. Minha mãe engravidou de mim quando tinha 47 anos usando DIU…. [risos]. Portanto, temos idades dos 3 aos 80 anos. E ali existem diversas formas de finanças. Muitas vezes dizem que os pretos são iguais e não são. Na Conta Black, por exemplo, eu contemplo 5 personas físicas e 5 personas jurídicas.

Você vê propósito no tipo de negócio que decidiu empreender?

Eu não romantizo empreender. É um processo cansativo. Se você for negro, é mais cansativo ainda. O contraponto é que é, sim, cheio de propósito e vejo os resultados nas micro transformações. A Conta Black é a primeira conta da maioria das mulheres. Entendemos que proporcionamos a liberdade financeira para estas mulheres. Acompanhamos o crescimento das pessoas: o crédito que foi concedido lá atrás, para um negócio pequeno, e hoje já emprega um monte de gente. Eu me sinto realizada dentro de um processo que, eu sei, não começou comigo. Mas que também não vai parar em mim.



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