“Precisamos que as pequenas e médias empresas contribuam para a logística reversa. Só as grandes não vão preencher o todo”

Andressa Rovani | 24 nov 2021
A executiva de Sustentabilidade Onara Oliveira de Lima (Crédito: Divulgação)
Andressa Rovani | 24 nov 2021

A agenda ESG avança em velocidade entre as grandes empresas brasileiras, sobretudo para aquelas que conseguem identificar retornos financeiros em seus projetos de impacto ambiental, social ou de governança. E não precisamos ter vergonha de dizer isso.

A opinião é da engenheira ambiental e executiva de sustentabilidade Onara de Oliveira Lima, que defende que as premissas ESG caminhem acompanhadas do olhar econômico e, assim, sejam capazes de engajar altas lideranças em sua defesa.

“Se você não trouxer seu lado executivo para a agenda de sustentabilidade, você não convence ninguém”, diz Onara. E, sem liderança engajada, reforça, não se constrói uma cultura de sustentabilidade na empresa.

Há 18 anos dedicada a esse tema, Onara exerce todos os dias a escuta ativa em busca da pluralidade de temas que envolvem a discussão. Mas ela também opina, sobretudo quando encontra no discurso das empresas um dos muitos abismos que ainda existem nas práticas empresariais.

Ela conversou com NetZero durante suas férias, pouco antes de embarcar para Portugal. Na volta, Onara assumirá a área de Sustentabilidade da CCR, depois de mais de seis anos na Ambipar.

Leia a seguir os principais trechos dessa conversa:

NETZERO: Mesmo antes de se formar, você já trabalhava com sustentabilidade. Como você analisa as mudanças nessa área nas últimas duas décadas?

ONARA DE OLIVEIRA LIMA: Eu entrei na faculdade em 2002 para fazer engenharia ambiental. Fui da primeira turma da minha região, do Vale do Paraíba (SP), e lembro que essa era a famosa “profissão do futuro”. Comecei a trabalhar com meio ambiente já no segundo ano, com tratamento de efluentes.

Foi uma mudança lenta. Em 2003, falávamos de licenciamento ambiental, requisitos legais, ISSO 14.001 e era isso. Sustentabilidade era para os muito grandes, que estavam muito amadurecidos. Eu percebi que essa agenda ia tomar corpo quando estava na Gerdau e vi a preocupação com a comunidade, com o impacto das emissões.

Apesar de ter muitos críticos do ESG, a verdade é que quando o mercado financeiro trouxe essa agenda da sustentabilidade e as empresas entenderam que esse é um tema estratégico e transversal, a agenda ganhou maturidade. Mas estamos em construção. É uma jornada sem linha de chegada.

E o que é diferente hoje quando falamos em meio ambiente dentro das empresas?

Alguns pontos, como agilidade nas informações e cobrança da sociedade, se tornaram mais significativos. Eu nunca imaginei que veríamos tanta mobilização como tivemos agora na COP26.

“A iniciativa privada despontou por entender que, para se manter no jogo, ela teria que estar atenta a todas essas demandas. Hoje, quando acontece qualquer escândalo ambiental ou social, todo mundo fica sabendo muito rápido. Isso impacta o valor das ações.”

Quando a gente vê as correlações entre o mundo financeiro e o de sustentabilidade, percebemos que a sustentabilidade chegou ao lugar em que ela sempre deveria ter estado: que é conciliando e equilibrando todas essas possibilidades.

A transparência nas ações também ganhou relevância na agenda das empresas.

Hoje, eu estava lendo uma reportagem sobre “Os cinco pilares que tornam uma empresa confiável”. Ela consolida o que estamos falando sobre transparência. Em 2003, falávamos muito de compliance: sabíamos os requisitos legais, atendíamos e estávamos certificados.

Agora, precisamos ir além dos requisitos legais, as empresas têm muito mais compromissos do que efetivamente a legislação exige. Ainda não temos uma legislação estabelecida em relação a carbono, por exemplo, mas olha o esforço que as companhias estão fazendo para reduzir as emissões e assumir compromissos de médio e longo prazos.

O gargalo é que as empresas estabelecem muito compromisso, mas poucas falam sobre o “como”. Eu acho que a transparência passa por aí. A sustentabilidade não é construída só de compromissos, mas com o plano ano a ano, que tem que ser revisitado sempre.

Veja tudo o que estamos vivendo sobre mudança climática: é um cenário que a gente desconhece. É uma agenda viva, não adianta colocar na internet e só ver daqui a dez anos.

No livro “How to Avoid the Climate Disaster”, Bill Gates fala que as pessoas não estão preparadas para contabilizar as mortes que já tivemos e teremos em relação a mudanças climáticas. Já existem cenários irreversíveis, então temos que falar em uma economia regenerativa. Para mim é um grande abismo: vejo os compromissos e não estou vendo como [alcançá-los].

Quando falamos em economia circular, quais são os principais gargalos que enfrentamos para que ela se desenvolva?

Eu acredito que é a questão do pós-consumo. Quando falamos do rejeito da indústria, ele já é tratado como um potencial subproduto, que pode ser inserido no processo industrial e é muito gerenciado. Quando a gente fala no pós-consumo, que é o que vai para a nossa casa, a logística reversa é muito cara.

“Se você observar, o maior movimento está centrado em cooperativas, não em iniciativas públicas. Porque as cooperativas levam isso como meio de vida, e a maioria dos municípios não despertou para a reciclagem. Ao olhar para os produtos descartados, como tratar esse pós-consumo de modo estratégico e viável economicamente?”

É um grande gargalo, porque não tem como falar de sustentabilidade sem equilíbrio financeiro. Por mais que as pessoas não gostem de falar sobre isso, se a gente não tiver equilíbrio econômico, não tem empregabilidade, não tem melhores tecnologias, não tem como financiar projetos. O dinheiro é importante e ele vai possibilitar todas essas outras estratégias para termos uma economia mais friendly.

Falta incentivo financeiro para que o consumidor faça a separação na fonte?

Se a gente parar para pensar que a Política Nacional de Resíduos é de 2010, voltamos a questão: há um monte de compromissos e ainda estamos patinando. As grandes companhias estão assumindo metas. Há compromissos com a logística reversa de empresas como Tetra Pak, Coca-Cola Femsa, Nestlé, Ambev –é o que vai nos levar a cumprir esses compromissos ou até antecipá-los. Mas precisamos fazer com que as pequenas e médias empresas também possam contribuir. Só as grandes não vão preencher o todo.

NetZero publicou uma reportagem recentemente sobre uma startup voltada para logística reversa de grandes companhias, que investe na formalização de carroceiros e garante controle via blockchain. É uma saída?

O meu segundo ponto é justamente falar sobre essa cadeia de valor. As grandes têm que subsidiar os menores. Quando a gente fala de cadeia de valor, entra na governança. Já tem realmente empresas monitorando sua cadeia por meio de blockchain, que é uma tecnologia altamente confiável. Mas vai além disso.

Quando um grande contrata um pequeno, tem que pagar um valor justo. As empresas precisam evoluir para entender que não é o menor valor [parâmetro para contratação de fornecedor]. Tem que pagar para não ter nenhum risco. Não adianta querer pagar o menor valor e exigir que esse fornecedor entregue a melhor rastreabilidade, isso tem preço.

Você observa isso acontecendo na prática?

Muito ainda nas grandes companhias, mas é um caminho para ser pavimentado para pequenas e médias. Enquanto elas não tiverem incentivos para trazer essa agenda para seus processos, sempre teremos uma parte faltando nessa figura. Pequenas e médias se sentem amedrontadas ao falar em ESG. Tem que ser desmistificado.

“Não estamos falando sobre produto, mas sobre processo. Eu posso oferecer um produto sustentável, mas será que meu processo está sustentável? Será que estou com um olhar para os meus colaboradores? Estou gerando valor compartilhado?”

Quando trazemos tudo isso para a estratégia da companhia, quando ela está madura nessa agenda, ela já entende que a sustentabilidade é transversal. Uma empresa com ESG bem estabelecido vai conseguir empréstimos a uma taxa muito menor, é um ecossistema que tem que estar interconectado para ter um único resultado na ponta. É uma agenda profunda.

Adotar uma agenda ESG é também uma questão financeira?

Tudo precisa de compensação. Quando você olha para créditos de carbono, existem os pagamentos por serviços ambientais. Para uma pessoa deixar uma floresta em pé, ela precisa de incentivos. Não podemos ter vergonha de dizer que ESG está atrelado ao econômico, não podemos levar essa agenda para o ativismo.

Isso quer dizer que sustentabilidade tem que estar atrelada a bônus de executivo? Sim, é a lei do incentivo. Se não fosse assim, não teria como falarmos de pagamento por serviços ambientais. E no final do dia, se não tivermos todos esses itens equilibrados, não podemos falar de sustentabilidade.

“Quando você apresenta algo ao board de uma companhia, não adianta levar uma apresentação bonita. Tem que levar fatos, números, comprovar que a sustentabilidade é estratégica, os motivos por que vale investir e explicar qual vai ser o retorno.”

Se você não trouxer seu lado executivo para a agenda de sustentabilidade, você não convence ninguém. É preciso lançar mão de números. Quando um executivo de sustentabilidade entende que tem que traduzir sustentabilidade para a linguagem financeira, é quando ele ganha crédito, é quando as pessoas param para ouvir. É assim que é.

E que diferença faz uma liderança comprometida?

Sem liderança comprometida e engajada não há cultura, e sem cultura não temos sustentabilidade. O maior viés de uma sustentabilidade verdadeira está na cultura da companhia, e para isso é preciso de alta liderança engajada. É um movimento irradiado de cima para baixo.

Engajar os principais executivos de uma empresa é mais um dos desafios?

Ainda é um desafio. Pouquíssimos CFOs ou CEOs falam com propriedade de ESG; em geral, ele chama outro executivo para falar. Enquanto isso acontecer, é porque a empresa não está engajada. Claro, também é preciso ter um diretor nessa área para ganhar aliados.

“Eu sou uma chata de plantão. Eu falo: não adianta você cuidar da comunidade e não cuidar de seus colaboradores. Na minha opinião, o ‘S’ [o social do ESG] é nossa maior dor. É muito grave quando o colaborador não se enxerga naquela história bonita do seu relatório de sustentabilidade.”

Esse é um grande gap. Se o seu colaborador, em qualquer nível, não se enxerga ali, alguma coisa errada tem. Se uma empresa não cuida de seu capital humano, vai errar em todo o resto.

O que vemos são investimentos significativos em ações ambientais. A vez do “S” ainda vai chegar?

Eu penso que o “S” é um eterno desafio. No ambiental, uma vez implementada a tecnologia, ela vai te gerar um benefício contínuo. Na governança, você está sempre treinando. Já quando fala do social, o próprio mercado de rating tem dificuldade de mapear. Eu sinto muita falta disso, porque estamos falando do que faz a roda girar.

Como é de fato esse “S”, dentro e fora da companhia? É uma agenda que exige olhar calibrado. E repito: falar de empresas de capital aberto é falar de uma fatia muito pequena. Saindo disso, há uma infinidade de empresas que precisam ser resgatadas para esse movimento.

Por estarem no centro desse ecossistema, são as grandes empresas que devem induzir essa mudança cultural?

As empresas têm que entender qual é a materialidade delas de fato. Não adianta falar: ‘Estou reduzindo as emissões’ se seu problema é com recursos hídricos. Ou se ela tem 5 mil pessoas trabalhando em péssimas condições, ouvindo xingamentos o dia inteiro.

Qual é o tema material da sua companhia? São as pessoas, não é o net zero. Isso me incomoda muito, eu sou muito crítica. Não adianta falar em carimbo, ESG não é sobre selo.

Você tem que mapear os riscos e se preparar para eles, e saber que isso pode mudar. Nossa desigualdade social é enorme. Eu fico triste quando tratam dessa agenda com tanta superficialidade.

A COP26 contou com a presença de muitas empresas brasileiras, que mostraram a importância desse modelo de engajamento para mudar o cenário que vivemos. Deveríamos estar discutindo mais a agenda ESG na esfera pública?

Essa agenda está bem difundida entre as grandes companhias, mas o poder público é fator determinante nisso tudo. A gente só avança de fato quando as políticas públicas são definidas. Por exemplo, a regularização do mercado de carbono no Brasil. Não pode ficar não ficar só no voluntariado. Quando as políticas públicas acontecem, as pequenas e médias também se engajam.

Hoje, pouquíssimos municípios têm coleta seletiva. O governo poderia fortalecer tecnologias. Há países que geram energia a partir de resíduo, por que não geramos riqueza para o país? Por que não fazemos a transição energética? O privado sozinho não sustenta essa cadeia. Não vejo o poder público hoje preocupado com tecnologia.

O que podemos esperar dos próximos anos em relação a isso?

Com o governo atual, é difícil ter alguma previsibilidade por causa da instabilidade política. Acho que sociedade, companhias, terceiro setor devem continuar no seu movimento de pressão para que a gente não perca de vista os compromissos já assumidos.

Quem trabalha com sustentabilidade dorme com a consciência tranquila ou conhecer de perto o tamanho do desafio é perturbador?

Não sei se tranquilo, ansioso ou mais preocupado. Eu durmo intrigada em como podemos fazer a diferença. Quando ficamos muito crítico, esquecemos de ser a solução, viramos problema.

“Precisamos que cada um faça sua parte bem-feita, pare de criticar e una forças. A sustentabilidade é uma área que precisa ser democratizada, com uma escuta atenta. Nenhuma empresa vai ser perfeita, mas eu tenho mais medo de quem não está tentando fazer.”



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