Pioneira, startup usa resíduos de cacau descartados pela indústria do chocolate na Bahia para formular biocosméticos

Julia Moioli | 31 maio 2022 Julia Moioli | 31 maio 2022

“Alguém está vendo essa montanha de cascas no chão e toda essa sobra do fruto sendo simplesmente jogada fora?” A pergunta foi feita durante a visita do pesquisador Fábio Neves dos Santos a uma fazenda em Ilhéus, na Bahia, em 2014, quando acompanhava de perto o processo de produção de chocolate para sua pesquisa de doutorado: colheita na roça, fermentação e maturação da amêndoa, retirada da casca e moagem. Mas o que chamou mesmo sua atenção foram os resíduos.

Ao questionar os trabalhadores e o próprio fazendeiro sobre o que seria feito com as cascas, ouviu sobre planos para testá-las como ração para gado ou adubo, mas a verdade é que elas não tinham destino certo. Além do desperdício, se permanecessem ali descartadas próximas à lavoura podiam ser infectadas com o fungo da vassoura de bruxa e contaminar as outras plantas, comprometendo a produtividade geral da lavoura.

Já o mel de cacau (líquido extraído da polpa por prensa mecânica) até era consumido por algumas pessoas como bebida, mas, no geral, era escorrido e descartado para não prejudicar a produção de chocolate, pois fermentava rapidamente após ser retirado do fruto, liberando gases que, além de deixarem um forte cheiro ácido no ambiente, aumentavam a temperatura nos cochos de madeira. Pouco difundido na época, hoje o mel de cacau já tem ampla comercialização.

“A casca do cacau representa 80% do peso do fruto, enquanto o mel e a polpa, mais 10%. O que a indústria do chocolate aproveita é apenas a amêndoa, ou seja, os 10% restantes. A cadeia tem um desperdício altíssimo, algo muito ruim do ponto de vista ambiental. Quando presenciei isso pela primeira vez, só conseguia pensar que os resíduos certamente poderiam se transformar em outros materiais, com novas aplicações.”

O primeiro impulso de Santos foi pedir para levar amostras para testar no laboratório da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), onde realizava sua pesquisa, focada em doenças do cacau. Com uma mala carregada com 30 quilos de tudo o que pôde pegar (fruto, casca, mel), fez a viagem da fazenda até o aeroporto para descobrir que não poderia embarcar com tanto. Saiu distribuindo o que dava entre quem estava por perto e, finalmente, conseguiu entrar no avião.

Estava plantada a semente para o que, anos depois, se tornaria a startup Cacaus Biocosmetics, marca pioneira no mundo no uso de resíduos de cacau para a produção de cosméticos, que hoje está em fase de estruturação para comercializar sua linha e receber aportes maiores de investimentos.

Já no laboratório, Santos encontrou naqueles restos que iriam para o lixo compostos bioativos, altos teores de vitamina C, proteínas, peptídeos, lignina, celulose e minerais como cálcio, ferro, magnésio, manganês, sódio e zinco, que indicam atividade antioxidante e são interessantes para destinos muito mais nobres, como alimentos e cosméticos. E o melhor: era tudo biodegradável.

Daí em diante, dividiu seus esforços de pesquisa entre a tese sobre e o tema recém-descoberto, aproveitamento e uso sustentável dos resíduos agrícolas do cacau. Passou a elaborar projetos e buscar programas que o capacitassem a transformar a ideia em negócio, como o programa Biota, da Fapesp, para pós-graduandos empreendedores no eixo de conservação ambiental e aproveitamento de resíduos, e o Spin Way, concurso de formação empreendedora promovido pela Universidade de Santiago de Compostela, na Espanha.

Finalmente, no ano passado, Santos desenvolveu dois produtos cosméticos: um creme facial antioxidante e uma loção corporal, ambos já com patentes solicitadas, que passaram por testes de irritação cutânea para assegurar sua segurança e testes de proliferação e regeneração celular, com resultado superior aos controles.

Isso significa que estão prontos para serem comercializados como produtos de grau 1, de acordo com a Anvisa, com formulação com propriedades básicas (assim como águas de colônia, condicionadores de cabelos e cremes, loções e géis faciais, entre outros). Em uma próxima fase, a ser realizada ainda este ano, serão feitos testes complementares específicos para confirmar finalidades como antiacne e antissinais.

“Nossos cosméticos diminuem o impacto ambiental em duas frentes. Primeiro porque são ingredientes naturais e resíduos agrícolas. Segundo porque são biodegradáveis e, ao contrário daqueles que possuem derivados de petróleo em sua formulação, não contaminam água e solo ao descer pelo ralo nas cidades grandes.”

Em fase de início da comercialização, com estruturação financeira, tributária, de vendas, de logística e de comunicação e marketing, a startup de Santos passa por programa de aceleração renomado, o Leaders in Innovation Fellowships Programme (LIF), da britânica Royal Academy of Engineering.

NOVA FONTE DE RENDA PARA CACAUICULTORES

Assim que der a largada na produção em maior escala, a Cacaus Biocosmetics usará sua filial na Bahia para se manter em contato próximo com as lavouras e provocar impactos econômico e social. A venda da casca do fruto para a startup contribuirá para o incremento da renda dos produtores (que geralmente comercializam apenas a amêndoa), que também deixarão de lado a necessidade de comprar produtos para tratar o resíduo e evitar proliferação de pragas na lavoura.

Agora, quando olha para seus cosméticos prontos, Santos não consegue deixar de pensar em um outro potencial do cacau: incentivar o plantio para reflorestamento na Amazônia. Como a planta se beneficia da sombra de árvores maiores e da temperatura e umidade controladas que o bioma proporciona, é possível criar um sistema agroflorestal com uma atividade produtiva que não causa danos à mata e ainda reduz gás carbônico da atmosfera.



CONFIRA TAMBÉM