Central de Custódia: 3 perguntas sobre como a verificação independente pode transformar a logística reversa no Brasil

Andressa Rovani | 19 jul 2022
Fernando Bernardes, diretor de Operações da Central de Custódia. (Foto: Divulgação)
Andressa Rovani | 19 jul 2022

A Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), criada em 2010 depois de duas décadas de discussão no Congresso, implantou uma série de inovações para a gestão de resíduos no país. Desde então, e mesmo antes, uma série de normas e leis buscam estabelecer diretrizes para a destinação ambientalmente correta dos produtos pós-consumo.

O marco regulatório estimulou a estruturação de uma cadeia de logística reversa que cresce a cada dia e envolve desde as grandes empresas que colocam milhões de produtos no mercado até pequenos catadores que percorrem as ruas das principais cidades brasileiras em busca de materiais aptos para a reciclagem.

No sistema hoje é possível se comercializar o material reciclável pós-consumo em si, que retorna para as indústrias para gerar novas matérias-primas, e o crédito de reciclagem derivado desse material. Criada em agosto de 2021, a Central de Custódia trabalha para dar mais transparência a esse ambiente, atuando como uma  verificadora independente dos resultados de logística reversa de embalagens. Com a inclusão de dados em uma plataforma web, as empresas envolvidas nessa cadeia conseguem checar se determinada nota fiscal registrada ali já está na base da Receita Federal, acusando a “colidência”.

Nos primeiros meses da plataforma, cerca de 20% das notas inseridas no sistema indicaram colidência –u seja, já tinham sido apresentadas como resultado da logística reversa anteriormente– e todas foram resolvidas. “Se a gente quer trazer um adicional de valor à cadeia e quer fazer o resultado da logística reversa virar um ativo, a gente precisa de segurança. Precisa de auditoria, precisa trazer um ambiente de regulação e verificação muito forte para ter investimento, inclusive voluntário. O mercado pode captar de uma forma nunca antes vista”, diz Fernando Bernardes, diretor de operações da Central de Custódia.

Bernardes é engenheiro ambiental com mestrado e doutorado em resíduos sólidos, e trabalhou por 12 anos na administração pública. Há um ano, diante das discussões cada vez mais amplas sobre logística reversa no país, ele foi convidado para desenvolver a startup.

Ele conta que o projeto de viabilidade econômica da empresa está olhando o Brasil para quando atingirmos a taxa de 40% de reciclagem de resíduo pós consumo, onde teremos mais de 6
milhões de toneladas sendo recuperadas. Hoje, a logística reversa é o propulsor de metade de todo o material reciclado no país. A intenção da startup é contar com os principais players do mercado inseridos na plataforma até o fim do ano, dando segurança à quem vende o resultado da reciclagem e à quem compra créditos da logística reversa.

O tíquete médio de uma entidade gestora, que faz esse trabalho estruturante na cadeia de reciclagem, está entre R$ 130 e R$ 150 por tonelada. A Central de Custódia cobra R$ 2,5 por tonelada para fazer a verificação. 

A seguir, Fernando Bernardes responde a três perguntas sobre o setor.

NETZERO: Como está o cenário da logística reversa hoje?

FERNANDO BERNARDES: A regra hoje é assim: se uma empresa coloca 100 toneladas de embalagens no mercado, precisa retornar 22%. Isso foi feito pelo PNRS (Programa Nacional de Resíduos Sólidos), depois tivemos um acordo setorial que é um instrumento para firmar compromissos na logística reversa e passamos a ter regulamentações estaduais. Os estados passaram a se mobilizar a partir de 2015 e criar seus próprios regulamentos. Temos hoje São Paulo, Mato Grosso do Sul, Paraná, Rio de Janeiro, Maranhão e Piauí com leis próprias. As empresas passaram a entender que não é só fazer reciclagem, que isso impacta a imagem delas no mercado. É uma questão nova, puxada pela onda ESG.

Como funciona: temos na base da cadeia as cooperativas, que comercializam os materiais recicláveis. O que traz lastro? As notas fiscais, que tem compliance na Receita Federal. As cooperativas vendem para os meios da cadeia, para o comércio atacadista de matérias recicláveis, os acumuladores. Isso porque as cooperativas não têm porte suficiente para chegar até as indústrias recicladoras. Esses acumuladores vendem para outra camada, que são os beneficiadores. No final, as beneficiadoras entregam para a indústria.

Então, a questão é que se gera crédito em cada etapa. Cada nota fiscal com o valor de peso em toneladas seria um crédito de reciclagem. Isso é um problema. Tem uma duplicação de massa, tem notas fiscais diferentes mas a mesma quantidade de massa circulando. A Central quer evitar colidência de nota fiscal, evitar que a mesma nota seja utilizada duas vezes e, principalmente, a duplicação de massa em notas fiscais diferentes. 

Quão recorrente é esse problema na cadeia de reciclagem?

Acontecia bastante quando ainda não tínhamos um ambiente de verificação independente. Hoje se fala muito em blockchain, por exemplo, mas quando você olha só para uma unidade gestora, não consegue ver todo ecossistema, daí corre o risco de colidência entre os sistemas.

As empresas querem trazer adicionalidade, elas estão investindo alguns milhões de reais nessa cadeia e precisam garantir que os resultados estejam trazendo adicionalidade. Para isso, estão buscando entes independentes para dar garantia.

Temos de um lado os fabricantes e importadores, que têm o objetivo ou a obrigação de recuperar 22% de embalagens. Eles contratam unidades gestoras e operadoras que captam dinheiro e investem na base da cadeia. A cooperativa vende 1 tonelada de vidro, por exemplo, e coloca isso na nota fiscal, que passa a ser o resultado da logística reversa e é comercializado. Isso é importante porque traz adicional de valor para a cadeia. Hoje as cooperativas, além de comercializar o material reciclado, também podem comercializar o seus resultados. Então elas ganham duas vezes com a venda do mesmo material. Essa é a lógica de estar usando a nota fiscal como lastro.

Para fins de cumprimento do PNRS, a empresa pode comprar a nota fiscal de qualquer etapa da cadeia? Não bastaria que se considerasse apenas as notas emitidas em uma dessas etapas?

Essa é uma grande discussão. Essas entidades gestoras e operadoras tem uma forma de operar. Há a base da cadeia e a maioria dos programas, que são chamados de estruturantes, investem prioritariamente  em associações de catadores e cooperativas. Mas têm sistemas de compra de crédito, que compram essas notas em qualquer elo da cadeia, e isso complica um pouco mais esse universo. Aí temos risco de duplicação de massa ocorrendo.

Qual é a fragilidade? Há mais de 30 programas e entidades gestoras executando isso hoje no país, e mais de 100 mil notas fiscais circulando como resultados de logística reversa. Cada vez mais essas notas entram em ambientes únicos de rastreabilidade e você deixa o sistema mais frágil. 

O objetivo da Central de Custódia é deixar o sistema mais colaborativo, em que cada entidade gestora submete suas notas fiscais e conseguimos indicar toda vez que essa nota tem colidência de resultados. O papel da Central é realizar a verificação independente dos resultados de logística reversa, para entidades gestoras e programas. Não comercializamos crédito. 

As indústrias perceberam que elas precisam de um outro nível de segurança. É assim que funciona com outros mercados, como o de carbono.



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